Teoria política e constitucional brasileira: os formadores do Brasil a partir da análise dos anais da constituinte de 1823.
Luiz Carlos Ramiro Junior*
RESUMO
O trabalho versará sobre os debates e temas levantados nos discursos da assembléia constituinte de 1823. Tendo em vista que tal fora dissolvida pelo Imperador D. Pedro I, e por conseguinte outorgou a Carta Constitucional de 1824, a relevância dos debates anteriores está em avaliar o que foi incorporado na primeira constituição brasileira; bem como apreciar a recepção de teorias políticas em que os constituintes se balizavam - modelos teóricos europeus e como isso se dava no contexto social brasileiro. A pretensão é de preencher uma lacuna nos estudos jurídicos, concernente ao pensamento jurídico e seu quadro comparativo o sentido da tradição jurídica brasileira. Por mais questionável que seja o conteúdo dessa tradição, não podemos facultar um mirar sobressalente sobre aqueles que abriram essa senda, como José Bonifácio, Marquês de Caravelas, Silva Lisboa, dentre outros publicistas brasileiros.
Um recurso metodológico importante que perpassa esse trabalho é da história das idéias. No entanto, há um câmbio no sentido de tecer algumas considerações a respeito de temas que, não só ficaram nos discursos dos parlamentares de 1823, mas refletiram disputas no ceio da sociedade, do período. Então o objetivo está em compreender o conteúdo dos discursos proferidos na Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil em 1823, não apenas como aporte na compreensão do pensamento da elite política e jurídica de então, bem como os pontos de inflexão desses discursos para demandas sociais.
Além de revalorização do pensamento dos formadores políticos e constitucionais do Brasil, aqui se faz uma considerável união, que cremos ser imprescindível, entre o panorama político e o direito como um instrumento de poder naquele mundo formado por bacharéis.
PALAVRAS CHAVES: história constitucional, pensamento jurídico e teoria política brasileira.
Em 17 de abril do ano de 1823(...) os trabalhos na Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil começaram, mas como em política nada é pura linha reta, ela não concretizou seu principal objetivo. Por outro lado o sumo de seus quase sete meses de trabalho também não foram descartados, quando, no dia 11 de novembro do mesmo ano, realizava seu último dia de debates e legislação para o país. Neste dia ela foi dissolvida, e presos os irmãos Andrada, redatores e articuladores dos jornais Sentinela da Praia Grande e o Tamoio, pomo da discórdia e do 'mal-estar' com o Imperador - que justificava a dissolução com o argumento de combater o facciosismo que comprometeria a Nação.
O conteúdo das questões ali debatidas neste ínterim traduzem uma senda de preocupações, dilemas e, sobretudo, disputas acerca da ossatura política do Brasil. Marcas figuraram na primeira Constituição Brasileira, escrita pelo Conselho de Estado, e em particular pelo Marquês de Caravelas. Este projeto acabou jurado como Constituição em março do ano seguinte (1824).
A presente pesquisa sobre teoria política brasileira, centrada nos anais da Constituinte de 1823, permite levar em conta a maneira como a elite política de então pensou o Brasil, e, conforme o leque de questões foi se abrindo, foram se desenvolvendo interpretações acerca da própria formação do país. A missão que se põe é de entender uma edificação constitucional e política, na qual impõe ao pesquisador se ver às voltas com documentação direta, como discursos, proclamações, representações, debates, cartas.
Inicialmente, duas considerações básicas devem ser observadas a respeito da importância de se resgatar este material. Primeiro, que é preciso reavaliar considerações tradicionais sobre a inteligentsia que compunha a constituinte. Legisladores como José Joaquim Carneiro de Campos(depois Marquês de Caravelas), José da Silva Lisboa(depois Visconde de Cairú), Cândido José de Araújo Vianna, José Custódio Dias, João Severiano Maciel da Costa(mais tarde Marquês de Queluz), os Andradas(Antônio Carlos, José Bonifácio e Martim Francisco), José Martiniano de Alencar, dentre outros, possuíam um considerável grau de conhecimentos políticos, constitucionais, históricos e, de parte de alguns, sobretudo da ala coimbrã1, um olhar sociológico sobre o conjunto da realidade do país. Longe de serem meros glosadores de concepções políticas estrangeiras, alguns tinham um tino aguçado de originalidade. Em segundo lugar, a Constituinte de 1823 tem uma relevância histórica negligenciada, porque são relativamente poucos os trabalhos sobre ela. Que surgida menos de um ano após a Independência, era um momento onde a própria integridade do Brasil era posta em questão. Províncias estavam em guerra pela independência - a província Cisplatina, por exemplo, já era considerada um caso especial no próprio projeto de Constituição da Assembléia(era considerada um estado federado). Por aí se percebe o grau de anarquia que muitos rincões do país se encontravam. Ademais não havia Brasil! O patriotismo, inclusive na voz de homens que 'lutaram' pela independência era antes por sua província – nos discursos, comum era falar em “amor pela minha pátria, ir ao meu país” ou coisa do tipo, mas remetendo ao seu lugar e não ao Brasil como um todo2. O nome brasileiro não era padrão e nem a língua o era. Enfim, analisar a constituinte de 1823 serve não apenas para ver que havia gente que fazia bom uso da língua portuguesa, mas que existia, dentro de um - latifúndio de problemas, mentes projetando uma nação - inclusive pensando no próprio grosso, como se depreende dos diversos comentários dos conservadores quanto à necessidade abolir gradualmente a escravidão. Um exemplo, José Bonifácio faria uma Representação à Assembléia, que acabou não tendo vez na constituinte de 1823, em que desenvolve melhor esse imbróglio.
A “Representação” de José Bonifácio certamente seria bem vinda, haja vista que mesmo havendo discussões sobre a malta da população, era raro o trato do tema com o intuito de incluir, por exemplo: nos debates acerca do artigo 5º, do projeto de constituição da comissão(que foi apresentada pelo deputado relator Antônio Carlos de Andrada Machado’)- a questão era “o que é brasileiro”; há ou não diferença entre Brasileiros e Cidadão Brasileiros? Pois bem, ficou claro que no que tange aos brasileiros: todos os nascidos ou que se tornaram por força de Lei(naturalizados), mas dentre os ‘brasileiros’ havia uma divisão entre: ‘não-cidadãos’(índios, escravos e estrangeiros) e ‘cidadãos’(proprietários, membros do pacto social), e são só os últimos os membros da sociedade, já que não cabe na sociedade ‘não-cidadãos’. Desse modo a “Representação” apontaria para a civilização do país, e poderíamos dizer para a própria inserção do escravo na sociedade como cidadão – o artigo XV deixa isso evidente ao dispor aos escravos o direito de testemunhar em juízo(mesmo que não contra os próprio senhores). Joaquim Nabuco retomou o tema, sessenta e um ano depois, da cidadania do escravo do seguinte modo: “Se os escravos fossem cidadãos brasileiros, a lei particular do Brasil poderia talvez, e em tese, aplicar-se a eles; de fato não poderia, porque pela Constituição[1824], os cidadão brasileiros não podem ser reduzidos à condição de escravos. Mas os escravos não são cidadão brasileiros[...]”(NABUCO, 1988 : 91), de modo que vai procurar no Direito Internacional a ilegalidade de escravizar um outro, mesmo não sendo cidadão – o lócus de abrangência da compreensão civilizatória de Nabuco era maior.
No mínimo o tema da abolição não ficaria eclipsado, como ficou durante boa parte do Brasil Império, na Constituinte de 1823 se fosse debatida a ‘Representação’. Mesmo sabendo que José Bonifácio estava falando aos seus pares, aos ‘poucos’ cidadãos do Brasil, para dizer que a sociedade acaba cultivando o ‘outro’ dentro de seu espaço, e então seria preciso inserir o escravo, o índio para evitar qualquer mal para a sociedade. A primeira parte da ‘Representação’ é justamente uma advertência mostrando “A necessidade de abolir o comércio de escravatura, e de emancipar gradualmente os atuais cativos é tão imperiosa, que julgamos não haver coração brasileiro tão perverso, ou tão ignorante que a negue, ou desconheça. Isto suposto, qualquer que seja a sorte futura do Brasil, ele não pode progredir e civilizar-se sem cortar, quanto antes, pela raiz este cancro mortal, que lhe rói e consome as últimas potências da vida, e que acabará por lhe dar morte desastrosa.”(ANDRADA E SILVA: 120).
Passando para o eixo desse trabalho, com uma apresentação geral sobre a condução dos trabalhos da Constituinte, dando atenção à formulação do sistema de governo instaurado, bem como as referências já presentes ao poder moderador em certos discursos – principalmente da autoria do futuro Marquês de Caravelas (José Joaquim Carneiro de Campos). A seguir tentarei esclarecer a conexão entre o fundamento intelectual dos discursos e aquilo que foi recepcionado pela Constituição de 1824 –, através de um exemplo, dentre os vários que podem ser debatidos, como quanto à instauração do tribunal do júri, liberdade religiosa, sobre o que se falava do federalismo e do processo eleitoral.
Dividido aqui em três – as diversas etapas da Constituinte de 1823. A primeira delas abrange as sessões preparatórias e o início dos trabalhos propriamente ditos, depois de aberta a Assembléia com a Fala do Trono – questões acerca dos governos provinciais (abolição do Conselho de Procuradores de Província), sociedades secretas, liberdade de imprensa, naturalização dos portugueses (e estrangeiros), processo legislativo e alguns debates preliminares sobre a instauração do Tribunal do Júri; A segunda etapa teve início com a apresentação do anteprojeto de constituição, apresentado pelo relator, deputado Antônio Carlos de Andrada Machado – esse é um ponto divisor de águas da constituinte. O projeto dos Andradas, a não ser no que se refere às liberdades individuais, não prevê a possibilidade de dissolução da Câmara, que estaria presente na proposta de Carneiro de Campos, então primeiro-ministro, de incorporação de um poder moderador. Uma pesquisa mais aprofundada poderia esclarecer se, neste momento, já não se iniciava uma preparação para a 'mudança de jogo' e imputar uma preponderância do imperador sobre a lei fundamental do país ou então podemos entender o contrário; a terceira etapa envolve o debate - artigo por artigo, (chegando até à segunda dezena dos artigos do projeto), além de projetos de lei paralelos como: sobre o ensino superior – a implantação de universidades, incentivo a fábricas de ferro, ainda sobre os governos provinciais, fazenda pública, funcionamento interno da Assembléia – querela quanto ao caso de deputados-ministros e do caso Caldeira Brant Pontes. Essa etapa é abruptamente encerrada com o fechamento da assembléia.
Decididamente, a principal instituição política que ganha a Constituição de 1824 é o Poder Moderador. Qual a originalidade na implantação do mesmo, cujo principal articulista havia sido o suíço Benjamin Constant? O projeto de Constant concebia o poder neutro (dava preferência a essa expressão ou poder real, embora também usasse poder moderador), nas mãos do Rei; é preciso lembrar que Constant é um teórico da restauração da monarquia francesa, ou seja, quer estabilizar as instituições liberais contra o absolutismo, quer monárquico, quer jacobino e portanto revolucionário. Ele imaginava assim a estrutura política de um Estado como um bloco do poder executivo e outro do poder legislativo; e, para que houvesse harmonia entre eles, era preciso o poder neutro, que agiria sempre que os interesses de um poder avançasse sobre os do outro, a fim de preservar o equilíbrio constitucional.
A inovação brasileira está, principalmente, na elaboração constitucional de José Joaquim Carneiro de Campos, ou depois, Marquês de Caravelas: se em B. Constant o rei não governa, no Brasil o Chefe de Estado é o governante suprapartidário. É certo que o poder moderador separa o chefe de Estado e o chefe de Governo (e o último tem os atos responsabilizados pelos ministros); ele faz a conciliação entre as oposições e se sobrepõe a elas, na necessidade de fazer as reformas que construam o Estado Imperial. Caravelas é um liberal moderado e reformista, ao passo que, um Silva Lisboa(Visconde de Cairú), por exemplo, é bem mais conservador, embora não absolutista. O poder moderador ronda a idéia de governo misto, com o monarca possuindo direito de veto. Formatando o controle estrutural de constitucionalidade, para a harmonia institucional: evita que os representantes do povo (Poder Legislativo) extrapolem o âmbito de mandato que lhes cabe ao serem eleitos. Poder moderador é poder excepcional a serviço da manutenção da constituição vigente.
Na constituinte de 1823 Benjamin Constant é uma referência onipresente e sua teoria é usada para argumentar em favor daquilo que seria apontado como deformador do poder moderador “original”, segundo os opositores brasilienses. Mesmo B. Constant separando o monarca do Poder Moderador, diz que em toda monarquia constitucional o Imperador pode escolher ministros e dissolver o parlamento. Ou seja, não houve traição à teoria do teórico francês, houvera sim várias adaptações, conforme aponta Christian Lynch em seu artigo(LYNCH, 2005).
Outro destaque é para o lado centralizador, elevado entre os coimbrãos, entre os quais os Andradas representam a ala mais radical desse objetivo. Mas ainda no que diz respeito ao centralismo moderado, entende-se que o Imperador é chave desse preceito: idéia de que a nação está encarnada nele, e ele a representa.
Ainda sobre o poder moderador - Carneiro de Campos e Antônio Carlos debatem na Constituinte de 1823. Carneiro de Campos tinha concepção presente de teoria política conforme a proeminência do Poder Moderador. E não a da Assembléia, como propalavam Antônio Carlos de Andrada Machado (mesmo quando o fazia por oportunismo), Vergueiro e Montesuma, dentre outros. Esse debate já está presente quando se discutia a primazia da representação da soberania da nação. Elementos mais radicais diriam que ela era exclusiva da Assembléia; mas os opositores sustentavam que ela e o Imperador estavam em pé de igualdade, ou que o próprio Imperador estava adiante - daí o título de 'Defensor Perpétuo' do Brasil.
Andrada Machado já no início dos trabalhos comenta sobre forma de governo e competência dos poderes. Ao tratar sobre o tema da anistia (e a quem competiria dar tal garantia), além de já apresentar o clássico conflito entre a coroa e o parlamento, ele já fala em poder moderador (Diário da Assembléia, 2003 : 107 Tomo I), mas de forma bem diferente do que Carneiro de Campos. Antônio Carlos reitera o caráter constitucional da Monarquia - para evitar a concentração de poderes, no intuito de ser o chefe de Estado um elemento da harmonia e conformação da Monarquia Constitucional e Representativa, como nessa citação: “...em uma Monarquia Constitucional não se encerra nela todo o poder legislativo. Em todas as Constituições o Monarca tem sempre tal, ou qual ingerência na legislação; não digo que seja característica indispensável da Monarquia; a razão pode bem conceber Monarquia, em que o poder legislativo em nada seja comum ao Monarca; mas a meu ver não pode a razão conceber como a Monarquia dura sem ingerência de Lei(...)”(Diário da Assembléia, 2003 : 106 Tomo I). Já para Carneiro de Campos, o controle estrutural é um poder ativo - e não passivo conforme elaboração de Benjamin Constant – incluindo a recepção de liberdades individuais, pressupõe uma coalizão política para possibilitar tais direitos: “Eis aqui, Sr. Presidente, o que, se pretenderá persuadir ao povo: para o que, se preciso for, se unirão todos os Partidos ainda que opostos entre si, a fim de ganhar força e destruir o nosso, e com ele a ordem estabelecida. Parece-me pois conveniente não organizar por ora os Governos, e reservar esta reforma para o tempo em que os Povos estejam mais acostumados às novas instituições, e esta Assembléia tenha adquirido mais força moral; e como ao mesmo tempo reconheço que alguns dos males exigem pronto remédio, entendo que será indispensável dar-se boas Instruções aos Governos, que marquem bem a extensão e limites da sua autoridade, e fazer-se uma Proclamação que assegure aos Povos que a Assembléia obra em plena liberdade, e que eles hão de gozar dos seus direitos individuais e políticos. Nada mais por ora (Diário da Assembléia, 2003 : 128 Tomo I). Eis então um belo exemplo das intenções de 'abrir as portas' das instituições políticas brasileiras de tal ponto adiante, e rumar para uma conciliação na intenção de justificar a unidade, progressiva modernização e democratização do país.
Quanto à tomada de idéias estrangeiras. O que se busca discutir aqui é que nem sempre existiu uma cópia fiel, do que era publicado na Europa ou nos Estados Unidos, para o Brasil. É certo que esse tema da tomada, seja de concepções filosóficas, sócio-políticas, econômicas ou jurídicas, há que se atentar para a dependência que a Nação se coloca frente aos exemplos ocidentais já estabelecidos. Uma tomada direta de qualquer discurso é algo negativo, pois produz situações bizarras, a história do Brasil é permeada por tais; contudo a situação de 1823 era o de formação da Nação. Se não houvesse um pressuposto de originalidade na formação das leis e do fundamento político, a própria Nação se colocaria na corda bamba, isto é, poderia não existir, já que toda a construção é contra o que está dado como certo, por mais que ela queira retomar ou continuar algo do passado. Não se tratava de continuar um projeto português, mesmo que a marca do passado era forte; mas de formar um novo projeto e que não fosse à luz de algo estranho ao Brasil. Não valendo, nem seguir a mesma linha mestra do passado português, e nem os caminhos revolucionários franceses ou o liberalismo político norte-americano. Essa formulação, é verdade, cabe muito mais ao lado dos ‘coimbrãos’.
A questão que segue ajuda a entender o eixo do confronto existente. Nos debates como se daria e se haveria a sanção imperial aos projetos de lei da assembléia? Ambos os partidos acabavam reivindicando soberania nacional (alguns com Sieyès3[1], por exemplo) como se percebe pela associação entre o direito de sanção e a vontade geral. Mas enquanto os conservadores entendem que esta se acha representada também na pessoa do rei, e daí o seu direito de veto, outra parte entendia que ela estava na exclusividade do corpo da Constituinte.
Numa certeira intervenção sobre o tema, Carneiro de Campos expôs os princípios do governo monárquico representativo e do governo misto. Interpretando esse discurso (Diário da Assembléia, 2003 : 299 Tomo I): O soberano é o poder executivo (Chefe) e a soberania só cabe em parte ao poder legislativo. O monopólio da soberania pelo legislativo é privativo, não das monarquias constitucionais, mas das repúblicas ou governos democráticos, onde há a supremacia do povo ou de seu corpo representativo. Sua concepção de monarquia constitucional corresponde àquela de uma monarquia temperada ou representativa, onde o Parlamento divide a responsabilidade legislativa com o chefe da Nação, ou seja, o monarca. Claro, se a força do chefe na feitura das leis for absoluta, não será monarquia constitucional, mas absoluta, o que não é desejado por Caravelas. Em síntese: esse publicista brasileiro parece mostrar que se os deputados estão querendo aprovar leis que descaracterizem o governo monárquico representativo, para transformar o Estado em uma República (tal qual nos Estados Unidos), é como se eles estivessem traindo o povo, já que o mesmo escolheu tal forma de governo, antes mesmo da reunião da Constituinte. A seguinte citação é ilustrativa: “É da essência do Governo Monárquico Constitucional e Representativo que o Chefe Supremo da Nação, o Monarca, tenha tal ingerência no Poder Legislativo, que as Leis por este decretadas, não possam ser promulgadas e executadas sem a Sanção do Monarca?(...)ninguém deixará de convir na afirmativa(...)”(Diário da Assembléia, 2003 : 299 Tomo I)
A conexão entre o fundamento intelectual dos discursos e aquilo que foi recepcionado pela Constituição de 1824. Iniciamos com o mais esclarecedor exemplo, o Tribunal do Júri. No capítulo 'Dos direitos individuais dos Brasileiros', o artigo 7º §2 do projeto de constituição de Antônio Carlos institui o seguinte: “II. O juízo por Jurados”. Mas é sobre o artigo 13 quando diz que “Por em quanto haverá somente Jurados em matérias crimes; as civis continuarão a ser decididas por Juízes, e Tribunais. Estas restrições dos Jurados não forma artigo Constitucional” (Diário da Assembléia, 2003 : 685 Tomo II), aí é que as divergências irão surgir.
O tribunal do Júri [ou de Jurados, como era dito na constituinte] é um tribunal popular, destinado a, no âmbito do processo penal, decidir sobre a existência ou não do ato delituoso e sua punibilidade. Ao juiz de direito cabe aplicar e graduar a pena, a partir da sentença prolatada pelos juízes de fato (leigos) escolhidos para julgar a querela(Pequeno Dicionário, 2004). Na atual Constituição Federativa da República Brasileira o Júri é apresentado no artigo 5º inciso XXXVIII, que diz o seguinte “é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;”(CRFB, 1988). Em 1823 o debate era pela existência ou não desse tribunal; e em caso positivo, se concebido, se ele teria competência somente no crime, ou no cível, ou em ambas as áreas.
Os brasilienses argumentavam que esse instituto tinha por base no direito anglo-saxão - mesmo tendo um histórico anterior, sendo adotado na antiguidade greco-romana, no território germânico, no próprio Brasil desde junho de 1822 - era tido como o paládio da liberdade. Afirmavam que ser julgado 'por um igual' significava a garantia das liberdades individuais, da propriedade e contra a tirania do Estado-central, e dos magistrados corruptos. A justiça do Estado deveria estar preocupada com os crimes políticos, deixando livre a atividade dos indivíduos.
Os 'conservadores' ou coimbrãos não eram unânimes na apreciação do futuro desempenho do instituto no Brasil. Só Silva Lisboa (futuro Visconde de Cairú) votou contra o Júri no crime. Inclusive esse faz um excelente discurso no seguinte sentido: recupera o contexto de implantação do instituto na Alemanha e na Inglaterra e, aponta as diferenças perante o quadro brasileiro, onde não tinha razão de estar. Já outros, como Arouche Rondon (conservador também) achava que o Júri deveria ser adotado gradualmente e conforme cada lugar, pois entendia que o litoral do Brasil em nada tem a ver com a realidade do imenso interior. Carneiro de Campos, por sua vez, com sua típica posição intermediária, fazia elogio ao Júri, para depois ponderar, porém, que, pelas circunstâncias, pela carência de boas leis4[2], além da falta de instrução dos povos, a implantação imediata do tribunal de jurados no Brasil não era viável.
No contexto em que os liberais defendiam as liberdades e a propriedade 'do povo', o questionamento de Silva Lisboa (Cairú) e de Carneiro de Campos (Caravelas) acerca da viabilidade do júri era plausível. Mais ligados à aristocracia rural, os liberais desejavam o júri para eles mesmos controlarem o judiciário local e se defenderem contra a expansão da autoridade do Estado. Cairú e Caravelas entendiam que, pelo estado de atraso da população, ela ficaria indefesa perante os potentados rurais. Para Cairu, nessas circunstâncias, o júri consagraria a feudalização do país; pois os crimes dos fazendeiros ficariam impunes. Algo inaceitável para um pensamento centralizador mais cerrado, já que parte da justiça sairia do domínio do Estado, que nomeia o magistrado para julgar nas localidades.
Tendo em vista o acirrado debate sobre o tema durante a Constituinte, Caravelas adotará na constituição de 1824, no seu artigo 151, uma solução de compromisso ou, pelo menos, postergatória: “O Poder Judicial é independente, e será composto de Juízes e Jurados, os quais terão lugar assim no Cível, como no Crime, nos casos e pelo modo que os Códigos determinarem.” (NOGUEIRA, 1999). Ou seja, deixaria o assunto para a legislação infra-constitucional. Em 1832, quando será elaborado o Código de Processo Criminal, sob o predomino dos liberais, será consagrada a plena liberdade local no funcionamento desse instituto jurídico no Brasil.
Considerações finais
É certo que seria necessário aprofundar determinados temas deste trabalho. Pinçar melhor questões relevantes ao centralismo do Estado, à figura da Igreja Católica como instituição estatal; a presença do elemento conciliador na figura de um Chefe da Nação; e o funcionamento da justiça no Brasil. Esta pesquisa envolve uma pretensão ainda mais interessante de apresentar em um trabalho futuro (sob orientação e organização do professor Christian Lynch (FD/UFF)), de compilar os melhores discursos dessa constituinte e divulgar os pensamentos que realizaram a estrutura política do Brasil, de molde a perfazer uma espécie de Teoria Política dos Fundadores do Brasil. Assim como a remissão à obra de Hamilton, Jay e Madison, isto é, o Federalista, é fundamental para compreender os posteriores desdobramentos da teoria política norte-americana; é grande falha dos politólogos e constitucionalistas contemporâneos não se debruçarem sobre as origens políticas e constitucionais do Brasil para tentar compreender a partir de então, seus desdobramentos e dilemas. Por fim, aqui vale uma citação que identifica esse pensamento: “....me dizes o que conheces, que te direis quem és...”(Gaston Bachelard) – se não conhecemos a história política do país, estaremos rendidos, por mais das vezes, num contínuo vácuo de identificação. Mas como em política não existe vazio, esse acaba sendo preenchido por mais idéias fora do lugar.
REFERÊNCIAS
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NEVES, Lúcia Maria Bastos P. . Corcundas e constitucionais: a cultura política da Independência (1820-1822). 1ª. ed. Rio de Janeiro: Revan/Faperj, 2003.
LYNCH, Christian Edward Cyril. O Discurso Político Monarquiano e a Recepção do Conceito de Poder Moderador no Brasil (1822-1824). Rio de Janeiro, Dados vol. 48 no.3 Sept. 2005, pp. 611 a 654.
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NOGUEIRA, Octaviano. Constituições brasileiras: 1824. Brasília, Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 1999.
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BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes. História constitucional do Brasil. 3a. Edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.
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RODRIGUES, José Honório. A Assembléia Constituinte de 1823. Petrópolis : Vozes, 1974.
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NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Petrópolis: Ed. Vozes, 1988.
CONSTANT de Rebecque, Benjamin. Princípios Políticos Constitucionais. Rio de Janeiro : Liber Juris, 1989.
* Graduando em Direito na Universidade Federal Fluminense.
1 O termo “coimbrão”, cunhado por José Murilo de Carvalho, em A Construção da Ordem, ao designar a elite política mais adepta do unitarismo, e assim foram denominados por terem passado pela Universidade de Coimbra.
Já o termo “brasilienses”, cunhado por Lúcia Mª Bastos Pereira das Neves, na obra Corcunda e Constitucionais - a cultura política da independência(1820-1822), designando a elite política mais desconcentradora, liberal e anti-lusitana.
2 O conceito de pátria e de país, naquele tempo, remetia à província, justamente porque o sentimento "nacional" estava por ser criado. Podemos dividir a identidade pátria perante três esferas:
1a. identidade - Império Luso-Brasileiro (português)
2a. identidade - Americano - (português da América)
3a. identidade - Província - (paulista, mineiro, pernambucano, alentejano, etc).
A diferença, era que os coimbrãos, na independência, privilegiavam a primeira identidade, que era fraca para os brasilienses, que se agarravam na terceira.
3 Emmanuel Joseph Sieyès (Fréjus, 3 de maio de 1748 - Paris, 20 de junho de 1836) foi um político, escritor e eclesiástico francês. Escreveu uma obra que marcou a teoria política e constitucional a partir da Revolução Francesa. O texto "Qu’est-ce que le tiers état ?" ("O que é o terceiro Estado?") foi escrito pouco antes da própria Revolução Francesa e serviria de base para o abade reivindicar apontar para a existência de um poder imanente à nação, o poder constituinte; ademais o projeto político desse autor e atuante no processo político francês de então era garantir a presença do Terceiro Estado(povo) no poder.
4 No Brasil, em 1823, ainda regiam leis portuguesas, o código civil, só reformado em 1916, ainda era 'as Ordenações Filipinas, conjunto de normas editada como resultado da reforma das Ordenações Manuelinas. Foi sancionada no reinado de Filipe I da Espanha, em 1595, era o período da União Ibérica. Dom João IV depois ratificou esse conjunto.